"Muita coragem me faltou
na infância: até para colar durante as
provas eu ficava nervosa.
Mentir para pai e mãe, nem pensar.
Ir de bicicleta até ruas
muito distantes de casa, não me atrevia.
Travada desse jeito,
desconfiava que meu futuro seria bem
diferente do das minhas
amigas. Até que cresci e segui medrosa
para andar de helicóptero,
escalar vulcões, descer corredeiras
d’água. No entanto, aos
poucos fui descobrindo que mais
importante do que ter coragem
para aventuras de fim de semana,
era ter coragem para
aventuras mais definitivas, como a de
mudar o rumo da minha vida se
preciso fosse. Enfrentar
helicópteros, vulcões,
corredeiras e tobogãs exige apenas que
tenhamos um bom
relacionamento com a adrenalina. Coragem,
mesmo, é preciso para
terminar um relacionamento, trocar de
profissão, abandonar um país
que não atende nossos anseios,
dizer não para propostas
lucrativas porém vampirescas, optar por
um caminho diferente do da
boiada, confiar mais na intuição do que
em estatísticas, arriscar-se
a decepções para conhecer o que existe
do outro lado da vida
convencional. E, principalmente, coragem
para enfrentar a própria
solidão e descobrir o quanto ela fortalece
o ser
humano. Não subi no barco quando criança – e não gosto de
barcos até
hoje. Vi minha família sair em expedição pelo mar e voltei
sozinha
pela praia, uma criança ainda, caminhando em meio ao povo,
acreditando
que era medrosa. Mas o que parecia medo era a coragem
me dando
as boas-vindas, me acompanhando naquele recuo solitário,
quando
aprendi que toda escolha requer ousadia."
(Trecho de
'Coragem' - Martha Medeiros no livro "A graça da coisa")
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